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A ligação do artista plástico Otávio Roth com o papel artesanal, mais do que emocional, é ideológica. Levou anos para retomar uma trilha abandonada no século 18 e insurgir-se contra a era do descartável, fabricando em casa o próprio suporte de suas obras. Agora, o resultado de suas apuradas pesquisas é mostrado, mais uma vez, ao público, na exposição montada no Espaço 2 da Pinacoteca do Centro Cultural São Paulo, junto à estação Vergueiro do metrô, a partir de hoje às 19 horas, onde Roth lida com um tema bastante familiar em sua obra, os direitos humanos.

Desta vez, porém, o texto da Declaração Universal dos Direitos do Homem deverá causar maior impacto do que as séries anteriores sobre o mesmo tema, em particular por ter sido a tábua dos mandamentos humanistas transposta para o português, num País onde esses direitos costumam ser pouco respeitados. Esta nova série, onde os pigmentos de várias cores (excetuando-se o preto e o branco, para evitar possíveis conotações raciais e uma incômoda hegemonia cromática que levasse a outras leituras) são impregnados durante a feitura do papel, diferente, portanto, do trabalho original encomendado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1978, quando a primeira versão foi exposta em Oslo, como parte da comemoração dos 30 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos.

Nessa, a xilogravura imperava como linguagem, recorrendo Roth a símbolos de fácil e imediata identificação  (mas que, nem por isso, eram interpretados da mesma forma, nos diversos países em que a série esteve exposta, entre eles Estados Unidos, França, Inglaterra, Áustria e Suíça). “Quando pensei em transpor a série para o português, decidi experimentar a impregnação dos pigmentos no papel, trabalho que consumiu dois anos, em Nova York, com a ajuda de um assistente. Não era possível desenvolvê-lo sozinho, porque as folhas de papel eram gigantescas (1,70 m) e pesavam, depois de prensadas, mais de quarenta quilos”, diz Roth, o mais disciplinado  discípulo de Paul Pitch e um dos prováveis herdeiros de Ben Shan, o mesmo da linguagem gráfica.

Roth, que trabalha com uma gama diversificada de sucatas para fabricar seus próprios papéis (sobras da indústria têxtil, casca de vegetais), utilizou mais de dez quilos de roupas velhas de algodão para realizar esta nova série, já exibida, em dezembro passado, numa exposição pessimamente montada no Rio de Janeiro (não por culpa do artista, mas pela desorganização dos assessores culturais de Brizola).

Sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem, ele já realizou cinco séries, uma das quais no Japão, a convite do governo de lá. Trabalhando ao lado do grande mestre japonês de caligrafia Ryoichi Kogi, Otávio foi obrigado a desenvolver uma linguagem peculiar e recorre a símbolos do imaginário oriental para traduzir em imagens, conceitos abstratos. “Já havia sentido uma certa dificuldade do publico, em alguns países, para entender os símbolos gráficos. Na Noruega, por exemplo,  o artigo que fala da prisão arbitrária era ilustrado por um homenzinho encerrado numa garrafa de rolha, o que os noruegueses interpretavam como uma critica pessoal ao alto índice de alcoolismo no País...”.

Outros símbolos utilizados por Roth acabaram gerando episódios curiosos, como o do funil invertido (por onde sai outro homenzinho), que o ex-Secretário Geral da ONU, Kurt Waldheim, interpretou como uma ligeira provocação. Em tempo: o tal funil significava que todos os homens têm o direito de escolher livremente seus representantes através de eleições diretas e, na época, Waldheim estava saindo substituído por Javier Pérez de Cuellar. “No Japão aconteceu outra coisa engraçada: o artigo sobre direito à alimentação, originalmente, era ilustrado com um garfo, uma faca e uma colher, o que não faz o menor sentido para os hábitos dos japoneses. Na Noruega, o artigo sobre o direito à livre associação também pegou mal, porque os noruegueses estão, compulsoriamente, ligados a sindicatos e associações. Num país que se orgulha de jamais ter violado os direitos humanos, era, no mínimo, constrangedor...”.

Alguns outros símbolos desenhados por Roth foram conservados, por serem inteligíveis em qualquer região do globo, embora, as vezes, o artista seja obrigado a algumas adaptações (a gaiola, por exemplo, que ilustra a prisão arbitrária, é um objeto raro em países civilizados).

“De qualquer maneira, sempre procurava símbolos fáceis de serem assimilados, porque parecia não existir uma forma atraente de manipular o assunto”, justifica Roth, que está preparando com a escritora de livros infantis Ruth Rocha uma versão da Declaração para crianças. “Gostaria de vê-las reproduzida em livros, cartazes, posters, ou por qualquer outro meio”, afirma Otávio, entusiasta defensor dos direitos humanos, cujos trabalhos estiveram presentes em todas as manifestações libertárias, do Comitê Brasileiro de Anistia às lutas internacionais contra a repressão. Enquanto isso não acontece, sua exposição disseminaos direitos pelos quatro cantos do País. Após seu encerramento no Centro Cultural (no dia 15 de abril), ela segue para Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis, Salvador e, finalmente, para Brasília, onde será inaugurada no dia 10 de dezembro, quando se comemoram 36 anos da Declaração.

Antônio Gonçalves Filho, “A arte no papel de Roth defende direitos humanos”, p. 27 Caderno Ilustrada, Folha de S. Paulo (quarta-feira, 28/03/84)

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